Se o laudo da perícia é claro ao atestar que o segurado não apresenta incapacidade total e definitiva, embora tenha conseguido se aposentar por invalidez junto ao INSS, não cabe à seguradora indenizá-lo. A obrigação subsistiria se o segurado restasse incapacitado pela perda da existência independente – como reza o contrato avençado entre as partes. Sob este entendimento majoritário, a 6ª. Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul livrou a Mapfre Vera Cruz Vida e Previdência de indenizar um segurado que restou inválido por doença profissional.
O desembargador Ney Wiedemann Neto afirmou que o julgamento desta Apelação – o segurado ganhou na primeira instância, e o tribunal reformou a decisão por maioria – marca um novo paradigma. É que a corte fez, pela primeira vez, a distinção no seguro de vida entre a invalidez profissional e a invalidez funcional. Ou seja, o seguro daria direito à indenização apenas se houvesse a incapacidade funcional, e não para a atividade profissional desempenhada pelo segurado – como no caso dos autos.
‘‘De modo geral, a jurisprudência estava firmada no sentido de sempre condenar a seguradora ao pagamento da indenização por invalidez por doença, mesmo que o segurado não estivesse incapacitado nas suas funções físicas, mas apenas para o trabalho que exercia’’, explicou o desembargador.
A decisão, por maioria, foi tomada na sessão de julgamento desta quinta-feira (31/5). A matéria será reapreciada, em Embargos Infringentes, no 3º Grupo Cível, que reúne os oito desembargadores que integram a 5ª e a 6ª Câmaras Cíveis do tribunal gaúcho.
O caso
Quando firmou o contrato de seguro de vida em grupo e de acidentes pessoais, em 2006, o autor da ação trabalhava como atendente de postos de combustíveis em Porto Alegre. Disse em juízo que, em novembro de 2010, foi apurado que estaria inválido para o trabalho e insusceptível de recuperação. Por este motivo, foi afastado do trabalho e aposentado junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A doença diagnosticada no quadril, denominada de coxo-artrose, compromete sua capacidade produtiva, uma vez que a função de frentista lhe exige boa mobilidade torácica, para manipular bomba de combustíveis, e longos períodos em pé.
Diante desta constatação, ele se dirigiu à seguradora para pleitear o pagamento do prêmio do seguro por invalidez, no valor de R$ 57.555,77. Além de o pedido ter sido indeferido, a seguradora lhe impôs a continuidade do pagamento do prêmio, sob pena de cancelar a cobertura.
A Mapfre apresentou contestação perante a Vara Cível do Foro Regional do Partenon, na Capital gaúcha, onde foi ajuizada a Ação Ordinária. Confirmou a contratação do seguro e a existência de cobertura para o caso de invalidez funcional permanente por doença (IFPD). Explicou que essa garantia permitia que o segurado recebesse o pagamento antecipado do capital contratado para morte, devido à perda de sua existência independente. Salientou que o contrato excluía a cobertura de tal verba no caso de o segurado sofrer incapacidade decorrente da atividade profissional.
Para fazer jus a essa garantia, destacou, o segurado deveria apresentar quadro de incapacitação de perda da existência independente, não sendo suficiente a mera comprovação de concessão de aposentadoria por invalidez. Em suma, a invalidez não se enquadrava no risco garantido, por não estar caracterizada a perda da existência independente.
A sentença
O juiz de Direito Mauro Caum Gonçalves, em sua sentença, reconheceu que a controvérsia versa sobre as diferenças de interpretação sobre a extensão da incapacidade do segurado. Disse que a prova pericial reconheceu a condição incapacitante do autor, notadamente em relação à função que antes exercia, devido à incapacidade da articulação coxo-femural direita.
‘‘De mais a mais, essa incapacidade por certo é definitiva, porque, do contrário, o autor jamais teria sido agraciado com o afastamento do seu labor, nem aposentado por invalidez perante o INSS. Ainda assim, o fato de a invalidez atingir toda e qualquer forma de atividade laboral ou de atingir apenas a atividade de frentista que antes exercia é desimportante ao julgamento da controvérsia posta’’, considerou o magistrado.
Na sua visão, é desarrazoado o argumento esgrimido pela seguradora, de que a incapacidade deveria necessariamente impedir ‘‘toda e qualquer atividade remunerada’’, pois tal condiciona o recebimento do valor da indenização securitária à ‘‘vida vegetativa’’. Tal previsão é abusiva, fere a própria essência do contrato e redunda em desequilíbrio, pois torna as obrigações do segurado maiores do que as da seguradora.
‘‘Aliás, um interpretar-se assim se reveste de requintes de crueldade e perversidade. E, não se esqueça, a exigência genérica sói abstrata e impede mensuração de quais sejam as condições incapacitantes cobertas pelo seguro. O feito procede, na forma da fundamentação, cabendo à demandada indenizar o autor pelo sinistro invalidez decorrente de doença, no limite da apólice vigente ao tempo do fato’’, decretou o magistrado.
TJ derruba a decisão por maioria
A seguradora-ré apelou da decisão ao Tribunal de Justiça, repisando, dentre outros argumentos, que o autor não apresenta nenhuma incapacidade total e definitiva.
O relator da Apelação na 6ª. Câmara Cível, desembargador Ney Wiedemann Neto, iniciou o voto, lembrando que a doença que vitimou o segurado, embora tenha lhe causado invalidez permanente, não se enquadra na hipótese da cobertura contratada junto à seguradora. Conforme certificado individual do seguro, o contrato celebrado entre as partes prevê, apenas, a garantia básica de morte, invalidez funcional por doença e a garantia adicional de indenização por invalidez permanente por acidente.
Nesta linha, transcreveu os termos do artigo 17 da Circular 302/05, da Superintendência dos Seguros Privados (Susep): ‘‘Garante o pagamento de indenização em caso de invalidez funcional permanente total, consequente de doença, que cause a perda da existência independente do segurado. Parágrafo 1º: Para todos os efeitos desta norma, é considerada perda da existência, independente do segurado, a ocorrência de quadro clínico incapacitante que inviabilize de forma irreversível o pleno exercício das relações autônomas do segurado, comprovado na forma definida nas condições gerais e/ou especiais do seguro”.
Para o desembargador-relator, não há como afirmar que o autor perdeu a existência independente, pois a própria perícia diz que não apresenta limitações na capacidade de execução das suas atividades cotidianas, bem como não é incapaz para o trabalho.
‘‘Por outro lado, apesar da aposentadoria por invalidez e de os atestados médicos afirmarem a existência de incapacidade para o trabalho, esta circunstância não tem importância alguma para a caracterização do presente sinistro. Ou seja, a garantia adicional de indenização por IFPD não tem relação direta com a incapacidade laboral parcial do segurado para a atividade de frentista’’, agregou.
De outra parte, encerrando o voto, o desembargador-relator disse que o caso não comporta a análise da interpretação mais benéfica para o cliente-segurado, como prevê dispositivo do Código de Defesa do Consumidor (CDC). É que não se trata de interpretação de cláusula, mas de simples leitura dos termos da avença, expressos no contrato de seguro.
‘‘Portanto, tenho que o não-pagamento da indenização pela seguradora se deu de forma justificada, não merecendo guarida a pretensão exarada na inicial’’, votou, sendo acompanhado pelo desembargador Luís Augusto Coelho Braga, que preside o colegiado.
Voto divergente
O voto divergente ficou por conta do posicionamento do desembargador Artur Arnildo Ludwig. Afirmou ser inviável exigir que autor reste inválido para toda e qualquer atividade para que exista a obrigação de indenizar da seguradora. O conceito de invalidez total adotado, destacou, não exige que a pessoa esteja atrelada a uma cama, sem possibilidade de realizar qualquer movimento, mostrando-se suficiente a incapacidade para exercer sua atividade laborativa normal e corriqueira.
No seu entendimento, a invalidez total permanente por doença se caracteriza quando o segurado padece de enfermidade que lhe inviabiliza o exercício de quaisquer atividades para as quais estaria normalmente qualificado, segundo a suas aptidões pessoais, aferidas a partir de sua idade, condição cultural e profissão.
‘‘Esclareço que se considera incapacidade para o trabalho a impossibilidade de realização da atividade laboral a qual se dedicava antes da ocorrência da referida inaptidão, não se exigindo que a pessoa esteja impossibilitada de exercer qualquer atividade profissional’’, encerrou.
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