sexta-feira, 29 de maio de 2009

O JUIZ É UM ESCRAVO DA PALAVRA

A seguir, publicamos o artigo de um colega, originalmente postado no site "Espaço Vital", com a devida autorização, em razão de sua importância e atualidade:




O juiz é um escravo da palavra

Cândido Alfredo Silva Leal Júnior, juiz federal.


Ainda continuo procurando os caminhos para melhorar a escrita, como havia referido anteriormente no Espaço Vital (19.05.2009). Aproveitando as oportunidades criadas no curso à distância com os magistrados sobre Estudos do Texto Jurídico, coordenado pelas professoras Arlinda Maria Caetano Fontes e Clarice Teresinha Arenhart Menegat (http://eademagis.trf4.jus.br), partilho mais algumas reflexões sobre os requisitos do texto na perspectiva do juiz.

A função do magistrado é dupla: agente de poder e servidor do público. Enquanto agente de poder, é intérprete do direito para encontrar a solução justa. Conversa com as normas jurídicas em busca da aplicação do melhor direito. Olha para dentro de si, em direção ao sistema jurídico que integra e representa. Entretanto, enquanto servidor do público, o juiz é mero tradutor do direito. Conversa com as pessoas em busca da solução do conflito. Olha para fora de si, em direção à sociedade que serve. Alguns acreditam que o juiz não manipula palavras nem precisa persuadir ao decidir. Acreditam numa definição única de justiça e direito, à qual o juiz deveria intransigentemente voltar seus esforços.

Entretanto, essa definição única de direito parece equivocada por ser ingênua: acreditar na possibilidade de uma linguagem neutra e na crença de uma justiça unívoca, hermética, fechada em si, acessível apenas ao intérprete autorizado. Essa crença no “bom juiz” é semelhante àqueles mitos do cavaleiro medieval e do bom selvagem, que povoaram o imaginário popular em tempos passados. Atribuía-se todo tipo de bondades ingênuas a cavaleiros andantes e a indígenas que viviam no paraíso. Transportadas para hoje, essas concepções românticas esquecem que o “bom juiz” é pessoa e está integrado à sociedade, ainda que tenha o pesado fardo de decidir sobre destinos e vidas alheias. Ao fazê-lo, não pode agir apenas enquanto agente de poder (buscando e impondo suas concepções de justiça, permeadas por suas experiências e esperanças). Precisa também agir como servidor do público, buscando nas outras pessoas concepções diferentes das suas, expondo suas crenças ao fundamentar a decisão, e permitindo que os instrumentos do devido processo, se for o caso, corrijam seus preconceitos.

É inegável que o juiz necessariamente manipula as palavras em seus textos. O escritor da decisão não tem como escapar disto: palavras têm gostos e sentidos comprometidos. Se o julgador ignorá-los, ainda que movido pelo nobre argumento da pureza da decisão, não estará sendo neutro. Estará sendo ingênuo, defeito que não é prudente num juiz. Seja como for, o juiz decide e é independente ao decidir. Cria ou diz o direito, como quiser. Parte da constituição e interpreta as leis. As partes lhe dão os fatos e ele lhes dá o direito. Mas não é livre quanto à forma de decidir porque a Constituição impõe que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade” (art. 93-IX).

O significado desse dever constitucional é explícito: decisão que não se explica é nula. O juiz é obrigado constitucionalmente a explicar como e porque fez aquelas escolhas. Portanto, como nenhum outro agente público, o juiz é um escravo da palavra. Sua decisão se legitima pela fundamentação que obrigatoriamente deve conter. Essa fundamentação é via de mão dupla: ao mesmo tempo em que suas razões devem ser públicas, é preciso que seja possível ao público – às partes, aos cidadãos, à sociedade – compreender essas razões. Portanto, o juiz deve se esforçar para se libertar dos labirintos linguísticos criados pelos operadores do direito (doutrinadores, advogados, magistrados etc), evitando que suas razões fiquem engessadas pela burocracia das formas ou perdidas na prolixidade do texto. Além de não se deixar aprisionar em labirintos alheios, o juiz não pode se fazer prisioneiro de labirintos ele próprio construa em seus textos. Suas decisões devem ser apresentadas num texto claro e preciso.

Mas nem sempre isso acontece. Seja pela falta de tempo para edição dos textos, seja pelos vícios que o computador permite na escrita, seja pela comodidade em repetir velhas formas, o juiz acaba - ele próprio - construindo labirintos em seus textos. Então, o texto judiciário sozinho não dá mais a resposta. Não basta ler o texto para saber o que foi decidido. A parte lê o texto que decidiu sobre seu pedido e não sabe se ganhou ou perdeu. O leigo acompanha o julgamento sem saber quem foi vitorioso. A decisão do juiz não ficou clara, com nítido prejuízo à jurisdição porque: (a) o cidadão comum sozinho não terá acesso ao conteúdo da decisão; (b) será preciso novamente um especialista interpretar o texto para saber o que foi decidido; (c) ambiguidades não-resolvidas dificultarão o cumprimento da decisão; (d) a parte não sabe se ganhou ou perdeu. Em suma, o texto não ficou claro e é preciso mais esforço interpretativo para compreendê-lo.

Como corrigir isso? O juiz não pode mudar as leis. Não pode suprimir recursos. Não pode ignorar termos técnicos. Não pode dispensar os ritos do devido processo. Mas o juiz pode transformar seu texto, o texto da decisão judicial, em instrumento de cidadania e de inclusão, contribuindo para acesso à justiça pelo cidadão.
Como fazer isso?

Em primeiro lugar, o juiz deve se orientar pelo bom-senso na escolha das palavras, reservando a linguagem técnica para aquilo que é essencial à exatidão da mensagem. O juiz deve escrever como um cidadão escrevendo para outro cidadão. Seu texto não deve ser acessível apenas aos operadores do direito (“iniciados”), mas deve ser inteligível ao leitor médio. Mas isso não significa substituir a linguagem técnica por gírias, termos não-técnicos, linguagem coloquial. O vocabulário técnico é essencial para precisão no texto judiciário. Não pode ser suprimido, mas não deve ser exagerado. O texto deverá ser claro, sem ser coloquial. Simplicidade não significa desleixo com as regras da língua culta.

Segundo, o juiz deve usar o relatório da decisão para garimpar as falas das partes e dali extrair os argumentos relevantes. Muitas vezes, as petições são confusas, os fatos desordenados, os argumentos embaralhados. O juiz não deve se submeter ao texto da parte, mas deve dali extrair os argumentos relevantes que serão acolhidos ou rejeitados na decisão. Ao elaborar o relatório da decisão, o juiz deve separar os argumentos e transformá-los em roteiro que sua decisão seguirá. Dando ordem aos argumentos, fica fácil para o juiz enfrentá-los separadamente na fundamentação, de uma forma lógica e linear. O raciocínio fica claro.

Terceiro, o juiz deve suprimir as ambiguidades e afastar as outras possibilidades de interpretação da decisão. É preciso deixar um único sentido possível no texto judiciário porque num processo questões não-resolvidas são como fantasmas que assombrarão os futuros leitores e atormentarão as partes no exato cumprimento da decisão. Todas as dúvidas do julgador devem estar resolvidas no texto. Preferencialmente, devem ser resolvidas antes do texto: o juiz só deve começar a escrever a decisão quando souber a resposta. A decisão precede à produção do texto. Do contrário, as dúvidas e hesitações próprias do processo racional de deliberação se transformarão em obscuridades, incoerências e contradições do texto, negando a adequada prestação jurisdicional.

Quarto, o juiz deve utilizar comandos claros, unívocos e precisos. O dispositivo é a parte mais importante da decisão porque ali está o que as partes terão de cumprir. É ali que está o comando imposto ao vencido. Fazer isso, pagar aquilo, não-fazer aquele outro. A fundamentação é importante para a história e justificação da decisão. Mas o dispositivo é o que se cumpre. Ou se deixa de cumprir. Quanto mais clara e precisa a explicitação do comando decisório, menores serão os motivos para descumpri-lo.

Em conclusão, o texto judiciário deve ser acessível ao cidadão, permitindo que uma simples leitura revele imediatamente um único significado. Para isso, não precisa ser coloquial ou descuidado com a técnica. Basta ser objetivo, técnico, preciso, elegante e claro. Não seria exagero afirmar que clareza e elegância no texto judiciário são requisitos da adequada prestação jurisdicional, garantindo acesso à justiça.

Publicado originalmente no saite Espaço Vital (http://www.espacovital.com.br/) em 26.05.09".

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